terça-feira, 23 de abril de 2024

Diário do absurdo e aleatório 287 - Emanuel Lomelino

Os olhos, hipnotizados pela maré vazante, ficam presos no coração do Tejo que pulsa, indiferente às traineiras e aos voos das gaivotas, com espelhos a surfar na serena agitação, das suas águas turvas, provocada pelo rastro de um catamaran. Há uma brisa que beija os rostos transeuntes como que anestesiando-os do abraço solar, fora de época, e oferecendo a maresia como perfume de consolo e paz.

Ouve-se, ao longe, a banda-sonora indistinta saída da garganta rouca de um vilão, acompanhada pela voz melodiosa, mas murmurada, de uma cantora gospel, que faz da rua o seu anfiteatro, junto a um malabarista de sapateado clássico.

Só falta um pintor, de tripé em riste e as mãos ocupadas com pincéis e uma paleta mais colorida do que o arco-íris, para que se forme o cenário perfeito: a natureza, ela própria uma obra de arte, rodeada de artesãos vários.

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Diário do absurdo e aleatório 286 - Emanuel Lomelino

Como não bastasse a densidade do bosque, com as suas altivas árvores de copas escuras e tão espessas que o sol não as trespassa, ainda se pôs este nevoeiro cerrado que cega o início do olhar.

Apenas ruído. Uma espécie de assombro canalha que gela pedras e raciocínio. Um tilintar indistinto, contudo macabro, fúnebre e tão encantatório como um coro de sereias à caça de náufragos.

O caminho, à margem das vespas e espinheiros, faz-se irregular, qual montanha-russa num parque de diversões devoluto.

Ouve-se o piar de uma coruja-das-torres e um indefinido restolhar, ténue e miúdo, tão rasteiro como uma subcave invisível, mas presente.

Subitamente, num passo de mágica, abre-se uma clareira tão larga quanto negra, como fosse o leito de uma gigantesca fogueira antiga, que oferece três trilhos. Um de seixos brancos e lisos de erosão, outro coberto por um tapete de folhagem calcada, o terceiro enlameado, íngreme e invadido por troncos tombados.

Os dois primeiros reentram no bosque. O último, menos convidativo, circunda a clareira e embica na direcção oposta. Por via das dúvidas, incorpora-se o espírito de Régio e segue-se adiante.

domingo, 21 de abril de 2024

Diário do absurdo e aleatório 285 - Emanuel Lomelino

De nada serve abrandar ou ziguezaguear a vida por medo da morte. Fazê-lo é prescindir das cores que a primeira contém, substituindo-as pela beleza daltónica da segunda, sempre em tons esbatidos e duvidosos.

Não adianta colocar pé no travão da existência porque as pétalas do tempo não se comovem com o abrandamento do passo e seguem, flutuantes, rumo à finitude da sua queda.

Não há fontes de água-benta que impeçam o pólen de Hades de espalhar-se entre a humanidade e aumentar a sua colecção de almas.

Mais confortável é aceitar com naturalidade o fim assegurado, deixando-o navegar nos mares da ignorância, como quem espera o sorteio da loteria sabendo que as hipóteses de ganhar são superiores a qualquer outra sorte.

sábado, 20 de abril de 2024

Diário do absurdo e aleatório 284 - Emanuel Lomelino

Nestes dias em que acordo com o reverberar da chuva pregado nos ouvidos e inspiro ursos polares, pela única narina desentupida, evito levar os dedos antárticos ao rosto coberto pela inclemência das horas.

Enrosco-me na fogueira de linho e maldigo a vertigem da noite, num gesto de revolta inconsequente que, por si só, aumenta o sufoco de mais um dia de pedras laminadas.

Contragosto, maquilho-me de feliz artífice, de uma arte que abomino, para mascarar o incómodo que o ambiente circundante provoca de véspera.

Nas ruas da cidade já deambulam outras carcaças abatidas pelos ventos gélidos da Fortuna, com as cabeças recolhidas num conformismo nefasto.

Tento alhear-me da lentidão dos ponteiros observando os voos caducos das gaivotas e interrogando-me sobre os guinchos negros dos corvos que fazem malabarismos acrobáticos nos cabos de alta-tensão.

E tudo isto, como uma sessão contínua de mau cinema, repete-se ciclicamente no turno do sol, cujo brilho há muito deixou de animar os meus passos.

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Diário do absurdo e aleatório 283 - Emanuel Lomelino

Começam-me a faltar fórmulas para explicar o gosto pela leitura e o prazer de ler livros em catadupa.

Chamem-lhe obsessão, vício, dependência, mania, sede de conhecimento, paixão, até loucura. Aceito todos os epítetos com a mesma naturalidade com que passo de Celan para Agustina, de Tchekov para Sophia, de Quintana para Hatherly, de Camilo para Pasternak, de Orwell para Vergílio, de Márai para Torga, de Eugénio para Gógol, de Pessoa para Steinbeck, enfim, de livro para livro, sem olhar a filosofias, épocas, proveniências ou géneros literários.

Sou um bicho das letras auto enclausurado nas badanas de um mundo paralelo, por onde deambulo em busca de respostas às perguntas que nunca fiz porque, só assim, consigo justificar a esquizofrenia que me abraça e faz-me sentir, bem vincado no âmago, este desenquadramento temporal.

Ler transformou-se numa epopeia lúcida com o objectivo de afastar a angústia de estar onde não pertenço, nem quero estar, e descobrir o espaço e tempo onde poderia encaixar-me como uma peça de puzzle.